Babel - Texto crítico do curador Augusto Nunes-Filho
Babel - enciclopedismo de
Miguel Gontijo
‘Minha pintura é um imenso muro babilônico.’ Miguel Gontijo.
Babel é espirais que convidam a voos e
enfrentamentos. Ascensão aos céus, descida aos infernos, ultrapassagem de
órbitas planetárias, viagem aos umbigos da terra. Babel é deslumbramento de
catedrais, subterrâneo de labirintos. E céu azul, muito azul, desafiado ao
infinito, que abrange a delicada articulação do universal com o particular
imbricados na contemporaneidade expressando-se na atemporalidade do tempo
mítico. Invenção humana por natureza, Babel é sangue na torre, cimento de mim. * A persistente tentativa do
retorno a um idealizado Um se concretizaria nessa mítica construção que,
chegando aos céus, realizaria o sonho impossível de, em vida, se acessar ao que
apenas com a morte se alcança: o fim das dicotomias, a eliminação das rupturas.
Passo a passo engendra-se a história. Deixei o tempo passar fiando novelos de
letras, esperando safar-me, com elas, do labirinto do Minotauro no qual estava
envolvido. * O fogo é determinante na cena da descida de Moisés do Sinai. O
arremesso das tábuas da lei sobre o carnaval profano destrói o cordeiro de
ouro, desbarata a festa pagã. O mensageiro divino lança o peso da mensagem
simbólica sobre o simulacro imaginário adorado pelo povo. Paradoxal como o fogo
- enquanto criação e destruição - Babel é a construção de um espaço mítico onde
‘as palavras são os raios de Deus’. *
Nessa torre se pode situar um ponto mítico de criação da cultura. O
reconhecimento da impossibilidade de reprodução plena da fala divina coloca o
homem em meio a um eterno campo de batalha. A luta pelo retorno ao paraíso, ao
silêncio, à desnecessidade da linguagem. O
livro que produzo são asilos de anotações, lascas de palavras, silêncios. *
Em definitivo, o mito de Babel explicita o
embate travado, pela preponderância e soberania, entre palavra e imagem, voz e
olhar. A radicalidade do abismo entre letra e imagem confirma que mesmo o
recurso a uma imagética da letra não confere o passaporte para o paraíso, único
lugar onde a palavra não seria um imperativo. Pelo contrário, o esvaziamento ou
a completude da própria letra apenas explicitaria a impossibilidade de tudo
dizer. A produção e o acesso ao sentido absoluto é inatingível.
Nos
meus textos as coisas perdem o seus nomes e as frases perdem suas regras. * A tentativa
contínua, continuada e vã de alcançar a plenitude do sentido pela transformação
da letra em imagem persiste no horizonte humano como meta eternamente
perseguida. Uma língua compreensível para todos continua a marcar presença no
horizonte da humanidade. Um silêncio
costuma ser uma imensa discussão. É a hora em que os pratos se quebram. Quando
converso estou negociando novos pratos. *
A palavra é um balão. Cheio de ar. De tudo,
de nada. Vazio. Ela tenta ocupar esse vazio com significações, sons, sentidos.
Instalada a meio tempo e espaço entre emissor e emissário, a palavra tece um
meio comum, uma ação comum, uma comunicação. Resta ao sujeito, a construção da
linguagem enquanto impossibilidade de instauração da plenitude do dito por
intermédio do bendito, maldito, interdito, meio-dito. A referência primeira, e
última, de Babel concerne à relação entre significante, símbolo e representação
na tentativa de construção do homem enquanto corpo, sujeito e espelho,
vísceras, máquinas e peles. Isso é Babel. Princípio, processo e fim da
constituição do homem.
Para Miguel Gontijo, a arte não oferece solução de mistérios, apenas visualiza o que não
pode ser nomeado. * Gesto, luz, cor, sombra, traço. Pintura. Desenho. O
trabalho do artista utiliza a pintura como ferramenta, e o desenho como
veículo, na construção de um fabuloso mosaico onde as imagens são os cabelos brancos da memória, como ele mesmo
enfatiza. O artista dialetiza Babel numa surpreendente espiral numa inusitada
construção histórica contemporânea no campo das artes visuais. O barroco já se
insurgira no percurso da própria arte na retomada das volutas de Babel para
atingir os céus e enfim re-ligar terra e céu, homem e deus, terra e paraíso,
(mesmo que para tanto fosse necessária uma passagem pelo purgatório).
A estrutura da linguagem funciona como um
imperativo na produção pictórica de Miguel Gontijo construindo-lhe uma
narrativa pictórica textual, singular particularidade e amplitude universal.
Como Bachelard, Gontijo opera cortes epistêmicos e lógicos; não em
continuidade, mas por rupturas na invenção de novas suturas e soluções de
continuidade. Não fico à caça do novo ou
ousado nas artes plásticas, mas creio que novo e ousado é perseguir um caminho,
continuando uma obra, intervindo no que existe, sulcando o espaço de tempo que
a vida me reserva com a tenaz persistência dos fanáticos e a lucidez dos
insensatos, acreditando no sonho e, vez por outra, descobrindo que existem
possibilidades no caos e no vazio. Ad infinitum. *
O artista privilegia o corpo humano como
elemento de destaque em sua obra das mais diversas formas, inusitadas maneiras
e inusuais frequências. O espelhamento que se apresenta em sua produção ocorre
preferencialmente pelo viés da fragmentação do traço identificatório, em
detrimento da totalidade da identidade da imagem. A figura ou paisagem,
composição ou montagem, com que se depara o olhar, fisga o sujeito resgatando
recortes de sua história para novas significações. Deus e o Diabo habitam
detalhes. O trabalho de Miguel Gontijo é exemplar na demonstração da diferença
entre o fechamento da totalização da identidade e o instigante do processo da
identificação.
Afirmar que a validade dessas telas só terá respaldo se cada vez que elas forem
interrogadas se alterarem * explicita, com clareza, a estirpe do
pertencimento do artista. Debate, combate, embate entre coisa, imagem e letra
problematizam a crueza do real da coisa, o espelhamento infinito da imagem, o
impossível acoplamento entre significante e significado.
Miguel Gontijo surge em um momento de
franca ebulição da cena artística brasileira, em meio à efervescência dos anos
70, diretamente herdada dos sólidos acontecimentos e traumáticas rupturas das
décadas de 50 e 60. O artista é um descendente direto do movimento que fora
desencadeado oficialmente pela Semana de Arte Moderna de 22 e dos seus
subsequentes desdobramentos.
Ao invés de seguir as pegadas automáticas
deixadas pelo surrealismo, ele subverte sua obra pelo resgate barroco da
tradição renascentista, pelo relato do retrato, pela reatualização desse tipo
de narrativa, pela antecipação da ênfase não em retratos, mas no próprio
retrato como se fora uma premonição da presença avassaladora do self. A obra de
Gontijo poderia se inscrever numa possível vertente surrealista pop antropófaga
da arte brasileira, que, entretanto, conforme as expectativas, não chegou a
criar raízes consistentes nessa história.
Quadrinhos, escrita, imagem, texto. Sentido
/ Non-sense. Ruptura. Não pinto o que
quero, nunca consegui. * O trabalho de Miguel Gontijo tece um amálgama
iconográfico que produz uma intrigante imagética que se situa para além dos
cânones modernistas. Até mesmo de referências aos incunábulos ele se vale ao
ultrapassar o sistema de letras do alfabeto, ao propor uma interação imediata
com a escrita, ao não mais enfatizar a leitura. Antropófago nato, o artista
está sempre a fazer convites para um banquete a mais.
Ao invés de uma mera reprodução da escrita
do inconsciente, onde se deixaria levar por um processo criativo ancorado no
automatismo ou na repetição, ele se decide pela apropriação da lógica do
inconsciente utilizando-o como infindável celeiro de criação. Cada uma de suas
telas disponibiliza verbetes que integram seu enciclopedismo como referências
artísticas, estéticas, ideológicas, religiosas, históricas, geográficas, filosóficas,
mitológicas, literárias, críticas e outras tantas mais.
A lógica do inconsciente se conjuga, na
obra do artista, em inventivas metáforas e infinitas metonímias que municiam
seu trabalho, sustentando a inesgotável procura da coisa. Referências, citações,
apropriações, produções são instrumentos usados com desenvoltura pelo artista
na construção de suas epifanias, onde se revela um pouco mais de cada um. As
clássicas figuras de estilo não são empregadas para simples introdução de
elementos pictóricos em suas composições. Sua narrativa composta por metáforas,
metonímias, citações, paródias, delas se apropria para nada menos que a
definição de um estilo. A escolha do artista pela lógica do inconsciente na
estruturação do seu trabalho insere tais figuras não como elementos decorativos
aleatórios de uma obra, mas como matéria prima de sua própria linguagem
pictórica.
A
arte contemporânea está completamente presa à concepção dela mesma.’ * O passo definitivo
dado pelo artista para construir o conjunto de sua obra ocorre pela digestão
enciclopédica que ele realiza da própria história da arte. Miguel Gontijo é
antropófago radical, pra frente e pra trás. Sem pruridos, passa pelas Sagradas
Escrituras, Tesouro da Juventude, Almanaques, Revistas, incorpora o imaginário
pop de Wahol ou Lichtenstein, a arte moderna de Picasso, o vanguardismo de
Duchamps, o surrealismo de Magritte ou o modernismo brasileiro de Tarsila do
Amaral e Cândido Portinari. Também sem
rodeios incorpora Histórias em Quadrinhos (Popeye, Batman, dentre outros),
assim como o classicismo de Boch e Dürer ou de Rembrant e Goya. O barroco do
Mestre Ataíde ou a arte sacra de Michelangelo também transitam sem pudor na
composição de uma obra enciclopédica, por natureza e definição. Herdeiro de tão
vasta tradição na sua tessitura de pinceladas e traços, para ele, as telas não se definem como pintura nem
como desenhos. * O enciclopedismo de Gontijo se inscreve em derivações de
variados tempos, escolas, estilos, movimentos, numa profusão pictórica que se
funda em traduções, interpretações, referências, apropriações, citações, que se
articulam em múltiplos eixos: renascentista, modernista, surrealista,
antropófago, pop, contemporâneo. Somos
nosso próprio engodo. Temos que nos aturar. *
O que é uma enciclopédia? Tenho muitas coisas de que não sei o nome,
nem para que servem. Elas são minhas matérias-primas. Eu as guardo num coisário
e, de vez em quando, as uso como se fossem milagres. * É assim a
enciclopédia do artista. Intangível, inacessível, indecifrável. Gontijo pode
ser classificado como um enciclopedista
contemporâneo ao melhor estilo Diderot, ou Tesouro da Juventude. O real, o
simbólico e o imaginário estão articulados na elaboração de sua enciclopédia
sob a consistência de um rigor que causa espanto. Seu enciclopedismo não
obedece à óbvia linearidade de A a Z que organiza os conhecimentos
enciclopédicos. Ao contrário, envereda por labirintos moebianos que encontram,
como saída, apenas o retorno pelo seu próprio avesso.
O enciclopedismo de Miguel Gontijo se
apresenta como resposta concreta e crua ao eterno embate travado pelo artista
com a própria arte. A arte contemporânea tem como característica marcante o
fato de se instigar a todo momento sobre seu próprio estatuto. A classificação
contemporânea não pode se ater a suportes ou materiais da obra de arte, não
deve se restringir a lugares ou disposições espaciais. Arte contemporânea
talvez seja aquela que se produz na revelação da complexidade que circunda o
homem naquele instante e lugar de sua existência, uma vez que não passa de uma
experiência restrita à própria condição humana.
A exposição Babel aporta, nela mesma, o
próprio mito da torre. Ela contempla também, no fim, sua destruição. Cumprindo
os desígnios divinos, a torre não logrará subsistir. Como que por milagre, ou
castigo, será destruída no dia anterior ao do lançamento do catálogo da
exposição. Da torre, se terá acesso apenas a fragmentos, relíquias, resquícios,
resgatados por impensada arqueologia. Seus restos se transformam nas imagens e
letras eternizadas em livro, reconfigurando nesse novo instante, as relações
entre coisa, letra e imagem. Agora destruída, completa-se o ciclo, também, da
Babel de Miguel Gontijo.
Augusto Nunes-Filho
Curador
* Miguel Gontijo, Pintura Contaminada.
Fotos de Daniel Moreira
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